Sobre biscoitos e bebidas

 Eu costumava ser uma garota decidida aparecendo com um corte de cabelo grotesco a cada semestre. Minha mãe me deixava solta pelas lojas de departamento dizendo apenas o limite de preço, nunca opinando sobre nada assim ela me deu de presente centenas de botas de corino, blusas coloridas, croppeds, camisetas de banda e um all star a cada fim de ano, obviamente não menos importante, uma personalidade própria. Quando tinha apenas quatro anos tive que começar a usar óculos minha mãe disse "você pode escolher, é você que vai usar". Eu sempre soube o que queria estudar, vestir, ouvir, comer "eu faço minhas próprias escolhas" eu pensava, a liberdade é só questão de ser. Não demorou muito para dar de cara com o muro frio da vida adulta, onde uma escolha nos leva a perder todas as outras, então eu me vi presa em uma pandemia global com apenas 20 anos, nada mais deprimente para vida de uma garota do que um bom tempo para pensar. Histórias de princesas presas na torre jamais dariam certo pois ao chegar para salvar sua amada o cavalheiro veria uma mulher totalmente insana por ser forçada a passar tempo demais consigo mesma. Aos 21 eu passei o inverno no apartamento da minha mãe, quarto andar, paredes cinzas, era como um quadro do hopper. Eu não sai para absolutamente nada e como se não bastasse comecei a ler a redoma de vidro, decisão que deu início a minha obcessão Sylvia Plath. E a garota decidida e espontânea se viu em contradição ao se identificar com a parábola dos fígos, "se eu escolher um irei perder todos os outros então o que me resta além de assistir todos morrerem, um a um por não conseguir tomar uma única decisão". Desde então eu apodreci em casa dia e noite e já estava tão insuportável que não me restaram amigos além do Mike que costumava abrir uma abrir uma cerveja em silêncio enquanto assistíamos filme em ligação, ele me ouvia chorar. E hoje não frequento lojas de departamento, eu engano a mim mesma dizendo que meu gosto ficou mais refinado. Na verdade eu odeio a experiência de passar horas rodando feito uma idiota sem saber o que eu realmente quero. Venho tentando enganar a todos desde a primeira vez que li a parábola dos fígos mas a cada dia fica mais difícil. Já faz dois anos e todo santo dia alguém testa minha paciência me perguntando sobre o futuro. Semana passada fomos a um mercado de bairro, observei o Mike colocar na cesta qualquer coisa como se sua escolhas fossem instintivas. Enquanto isso fiquei vagando entre um corredor e outro como de costume, ele riu sobre a situação e caçoou dizendo "fica mais difícil quando você não sabe o que quer", me espantei parada sobre o corredor de doces, meus pés estavam formigando e minhas mãos suavam, por mais que qualquer faísca de sanidade que restará na minha mente me dizia que o Mike estava falando sobre biscoitos e bebidas e não sobre minhas decisões de carreira, hobbies e planos para o futuro, mas não consegui esconder a sensação de ter um segredo revelado de forma tão casual e ríspida "eu não sei o que eu quero" pensei, então após pagarmos decidi voltar para casa, me despedi e peguei o metrô em direção a lugar nenhum que é onde eu moro. Observando as pessoas cansadas após o trabalho eu me empurrei em meio a multidão até tomar o caminho de casa, aquelas palavras ainda ecoavam em minha mente como se eu estivesse em uma espécie de transe. Após chegar em casa me sentei no sofá e deixei o par de all star jogados em qualquer lugar, caminhei até meu quarto e dei de cara com meu velho quadro de cortiça, onde eu sempre pendurava qualquer coisa que achasse ser especial. Então como uma espécie de revelação eu vi tudo, todos os recibos, tickets, fotos e trechos de músicas, todas as coisas que amo ou deixei de amar algum dia. Respirei fundo obcervando o caos entre os papéis, quem eu quero enganar? eu jamais vou decifrar quem eu sou ou o que realmente quero em uma noite de quinta-feira, é melhor descansar, amanhã é outro dia.

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